05 jan Não há papelão sem sonho
Entrevista concedida à jornalista Thaís Cavalcanti, do jornal Folha de Pernambuco. O texto serviu de base para a matéria sobre editoração independente, publicada no dia 15 de dezembro de 2013.
Thaís Cavalcanti – Qual seria o maior propósito da literatura cartonera?
Wellington de Melo – A liberdade, em suas várias dimensões. Não é um movimento que se paute por um programa estético ou ideológico, mesmo porque uma de suas características é adaptar-se à realidade de cada região em que se desenvolvem núcleos ou editoras cartoneras. No entanto, há algumas premissas que acredito serem importantes, que nascem na Argentina e que são compartilhadas por muitos: a perspectiva de garantir o acesso ao livro e publicar jovens autores, sendo o movimento uma alternativa ao mercado editorial tradicional, mas com preceitos muito particulares, como a economia solidária, o cooperativismo e o trabalho colaborativo.
TC – Qual é tua principal intenção com a Mariposa Cartonera? (é, por exemplo, democratizar o acesso ao livro? É dar espaço a autores/catadores? É transformar o livro num objeto de arte?)
WM – Compartilho as ideias originais do movimento: ter um selo cartoneiro é um exercício de liberdade, de transformar o livro não em um fim em si mesmo, mas um veículo de transformação das pessoas, de aproximar leitores e autores, autores de catadores. Uma ponte entre universos que nem sempre dialogam. No meio do caminho, descobrimos novos talentos, democratizamos o acesso aos livros e ressignificamos o livro como artefato cultural. Mas nada disso é mais importante que a possibilidade do encontro, consigo mesmo e com os outros. O cartonerismo não é só um movimento, mas uma maneira de ver o mundo e se relacionar com ele.
TC – Por que a escolha pelo estilo quando decidiu publicar o poema sobre tua relação com o teu filho (e o autismo dele), Aleph?
WM – A possibilidade de produzir o livro, exemplar por exemplar, com minhas próprias mãos, dava à experiência outra dimensão, mais orgânica, nunca conseguida com o modo de editoração tradicional – seja através de editoras, seja com autopublicação. Não se trata apenas se autopublicar-se: trata-se de uma relação visceral com o objeto e com a obra. Ao mesmo tempo, diferente de outros tipos de manufatura de livros artesanais, livros cartoneiros passam a integrar uma rede de colaboradores de todo o mundo, o que permite uma maior circulação da obra, que possa chegar a mais leitores. Cedi os direitos de edição do livro para o Severina Catadora, de Garanhuns. Elas podem comercializar o livro e transformar isso em renda para a cooperativa. Não preciso ter um centavo disso: o livro vai circular, ganham os leitores, ganha a cooperativa, ganha o autor, por ter sua obra mais reconhecida.
TC – Cria-se uma experiência de leitura mais particular? Como uma editora independente pode ter mais liberdade para influir na narração a partir de projetos gráficos diferenciados?
WM – Não há como negar que, não só com o objeto livro, mas com outros produtos culturais artesanais há uma relação diferente, talvez pelo vínculo que parece se estabelecer entre o artista e o público. A experiência de leitura, sabemos, tem diversas dimensões, desde a apreciação estética à dimensão sensorial (tato, olfato, visão), então sim, é uma experiência diferenciada saber que seu livro é único, foi feito manualmente, de um material que seria descartado pela sociedade e que se ressignifica com seu ato de leitura.
A questão do projeto gráfico não é o foco da maioria das editoras cartoneiras. Há um debate sobre essa coisa de “livro objeto”. Certa corrente, da qual faço parte, considera que transformar o livro em objeto de arte não colabora para o mais importante, que é incentivar a leitura. Ter livros perfeitinhos, com projetos gráficos lindos em papelão e que servirão para enfeitar estantes definitivamente não interessa. Por isso que há muitas editoras que fazem questão de deixar à mostra o papelão, não pintar toda a capa, reduzir o trabalho das capas em intervenções sobre os textos das embalagens. Trata-se de não maquiar a verdade por trás do papelão: que aquilo era lixo até se transformar de um livro, mas não precisa ser ocultado, como não podemos ocultar as narrativas dos invisíveis na sociedade.
TC – Como a editora pode ter apelo comercial, sem perder essa liberdade?
WM – É uma contradição, mas o apelo comercial das editoras cartoneiras é justamente não se pretender comercial. Pela facilidade de se publicar, uma editora cartoneira poderia publicar qualquer texto com muita rapidez, ignorando a qualidade e focando nas vendas. Há editoras em vários países que seguiram esse caminho equivocado, mas creio que não representam o verdadeiro espírito cartoneiro. O que interesse é a qualidade do texto e a possibilidade de levar esse texto de qualidade por um preço baixo, de modo que qualquer pessoa possa adquirir o livro. Há editoras que vendem livros na Europa por 25 euros, valendo-se desse apelo comercial do “livro objeto”, o que é um absurdo, vai contra toda a lógica solidária que deu início ao movimento. Discutimos isso no primeiro Encontro Internacional em Garanhuns e essa também foi a tônica do primeiro Encontro Europeu, que aconteceu meses depois em Barcelona: é importante não desviar das raízes do movimento. As vendas são um assunto secundário: vêm naturalmente se há verdade no projeto.
TC – É possível, na literatura cartonera, um livro ainda mais experimental, feito de outro material além do papelão?
WM – O termo “cartonero” vem do espanhol, “papelão”. Como o movimento se adapta em cada lugar, pode ser que as pessoas façam outros projetos, mas não tenho conhecimento. O que vi até agora é bastante experimentação, mas usando o papelão, colhido das ruas, comprado de catadores ou conseguido através de parcerias. Reutilizar o papelão parece ser uma das bases que dá a tônica solidária ao movimento. Particularmente, acho isso mais importante que a exploração de outros materiais, embora não negue a possibilidade.
O movimento cartonero surgiu num contexto de crise na Argentina. Acompanhando o desenvolvimento econômico do país, o mercado editorial brasileiro cresceu muito em relação a esse período entre 2001 e 2003. Nesse contexto, há também uma provocação dos livros cartoneros (por serem, por exemplo, menores e, portanto, mais práticos à leitura cotidiana) de que consumimos mais, mas não necessariamente lemos mais?
Isso é relativo, pois há diversas técnicas de encadernação, inclusive usando impressão em offset (tradicional), personalizando apenas a capa, o que garante livros grossos (com mais de 150 páginas). Ao mesmo tempo, qual a diferença entre ler um romance tradicional, com 300 páginas e ler 10 livros de 30? O que é melhor? Talvez uma pessoa que leia diversos livros curtos tenha uma maior bibliodiversidade que a que leu apenas um romance. Isso é relativo e pouco mensurável.
Sobre o mercado editorial, parece ser que o movimento não compete com o mercado tradicional. Grandes autores como Haroldo de Campos, Manoel de Barros e Ricardo Piglia publicaram livros cartoneiros. É outra experiência editorial, com outra escala e outra lógica econômica. Outra prova da vitalidade do movimento é que ganha força em países com realidades de leitura tão diversas como Brasil, Argentina, México, Espanha e França. Em cada lugar, o movimento ganha seu público por motivos diferentes, justamente pela premissa da liberdade.
TC – Em tempos em que se discute o abandono do papel e sua suposta “morte”, de que modo achas que as publicações independentes vão além da relação de afeto de se ter o livro físico?
WM – Por tudo que falei. Veja que falamos aqui do movimento cartoneiro, que difere de edições independentes de pequenas editoras ou de autopublicação, que, embora difiram do mercado tradicional, ainda reproduzem sua lógica de manufatura e distribuição. Jogam o mesmo jogo das grandes editoras e, naturalmente, saem perdendo. A diferença do movimento cartonero é que joga com outras regras, outra lógica, que subverte e dá um nó na cabeça dos editores tradicionais, porque o lucro não é o mais importante, porque entende-se que há uma grande rede solidária que une as editoras, escritores e leitores. Nesse jogo, com essas regras, as grandes editoras só conseguem ficar na geral, observando. Só que o campo está vazio: as editoras cartoneiras fazem a festa no campinho da várzea, do lado da arena, rodeados de leitores.
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